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Saturday, November 26, 2011

DESCER À CHUVA

..

chega dos rumores tece um parto à chuva;
sua bruma é o leite da manhã;
tem duas ânforas dispersas no peito
e alimenta os nervos à flor das paixões.

também eu desci à chuva cede-me uma ânfora;
havemos de conversar carne na carne;
na bruma da sua pele produzimos a língua;
os nossos nervos aproximam-se
como duas aves lânguidas tomadas de espasmos.

in a vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos
......
(minúsculas águas)
..
a vida é para mim um aguardar d'águas;
o âmnio esclarece-me a visão.
quando chove estendo o corpo à beira das estradas,
marcho onde retorna o arco
íris sempre atento à púrpura o olhar de uva e
quando o sonho move águas
e a menina do olho bebe leite
como a prostituta singela em seu feriado
desdobra a seiva que destina ao mundo abastado.
ainda chego matinal ao orvalho e recolho
os três poemas: a semente. o grão. o fruto.
..
in o gasto da semente

Sunday, November 13, 2011

OUTRAS LEITURAS

RICARDO RISO REVISITA CABO VERDE
...

Numa viagem que pressupunha breve ao blog 'sonhos não envelhecem', deparo-me com a antologia que distingue poetas de Cabo Verde - ANTOLOGIA DE POESIA CONTEMPORÂNEA - organizada por Ricardo Riso e bem ilustrada por Abrão Vicente e Mito Elias. O prazer da leitura discorre os olhos e distende meus neurónios sobre a matéria, vários corpos figurativamente belos que são poemas, as vezes prosa, rutilantes como o sangue das artérias e fui-me embora com eles, festejando. Abreviando, aflora-me o espanto, aborda-me o belo experimentalismo de Filinto Elísio. Coisa nova. Vou procurar ler mais este poeta no que tange ao seu estruturalismo, a sua metáfora de ponta e ao seu coeso estilo. Também os nervos colheram de Margarida Fontes uma coisa linda, na lucidez dos seus descaminhos. Espanto, minha gente. Sempre digo que tenho sorte quando encontro tão "novos" poemas. E agradeço.

Saturday, November 05, 2011




A GRAVATA AMARELA





Eu e a Ruth Pemba sonhamos muito.
Foi por mero desejo que começamos a cruzar os sonhos, mas ela com algum
capricho afirmava que tudo não passava de simples coincidência. Tenta
ludibriar-me e desexplicar como tudo foi e não foi mas a verdade tem mais essa:
desde o primeiro dia que a vi, imaginei coisas tão novas do que se pode ter de
uma mulher, enquanto o seu olhar me despia. Logo, a culpa é também minha e não
há-de jamais ser órfã.
Ruth vivia no nono andar do edifício cinco e normalmente chegava a pé
até cá abaixo onde moro. Da primeira vez pesava-lhe a noite, mas estava uma lua
libidinosa e compensadora. Cheia de bunda, uma boca rude e fresca num riso
maciço, foi a estender e a distorcer-se em idas e voltas, até que o primeiro
dos meus sonhos ela o reviveu completo. Estava um sol abrasador nesse sonho e
ela comigo amorosamente sós, fritando os miolos no inferno, passe o exagero.
Depois ela contou-me com exactidão meu próprio sonho e foi talmente que
estremeci enquanto ela não desbocava o tal riso carnudo numa boca cheia.
Nossa comunicação restringia-se a crises de sonho que citávamos um para
o outro, desde a noite que acordei pesaroso para escapar de um pesadelo.
Encontrei-a instintivamente, atónita, como se escapasse de uma fúria e que
havia encontrado a serpente exactamente onde eu a detivera.
- Andou por aqui uma serpente?
Fiquei assustado, mais sério do que no outro dia. Não acha que é
coincidência demais sonharmos os mesmos conteúdos, sempre? Praticamente não nos
conhecemos – estranhava algo furioso mas metódico; eu sei que para com ela os
meus motivos são simplesmente eróticos e, por esse andar, havia já ultrapassado
o necessário.
Continuávamos essa insólita convivência contra um mundo que nos vigia,
por obra das circunstâncias; correu tudo bem como os anjos quiseram nos
primeiros doze oníricos meses até que aconteceu o caso da gravata amarela.
Acontece que andava eu acordado num festival de sonhos, alguma vez,
quando um casal amigo apareceu, não sei se para casar, sonhar ou para se
embebedar. Pelo rumo do dia eles se embriagaram mesmo. Disseram-me que estavam
algumas horas atrasados e que iam se casar. Era quinta-feira e em Luanda os
casamentos são geralmente celebrados às sextas-feiras. Portanto, não podiam
estar atrasados como tal. Saí logo que se foram embora, fui comprar uma gravata
para me arrumar e ir de fato assistir ao casamento amigo.

Numa dessas casas espelhadas que agora invadem a baixa de Luanda – e
digo agora porque ainda há pouco a cidade carecia de espelhos e tinha acumulado
o lixo do mundo; e digo mais porque noutro tempo o que encarecia a vida não era
o ter que pagar mas ter o que comprar, com a guerra desinvestindo, a cidade
parada - numa dessas casas comprei,
dizia, uma gravata amarela.
Aprumei-me, vesti um casaco cinza e uma calça mais escura. A camisa
branca subjugava-se ao vistoso amarelo do meu adereço. Eu esbanjava entusiasmo
ao ponto daquele fulano que nunca me dirigiu conversa indagar perplexo:
- Senhor Afonso, onde tanta alegria vai?
Ia eu para a conservatória testemunhar o casamento de um amigo com a sua
flor – disse-lhe com poesia, meu sorriso resplandecia aos pequenos raios de sol
que acabava de descobrir-se por dentro da minha timidez; o meu sorriso sabe ser
vasto quando o momento assim pensa, até pelo menos chegar algo que me amargue.
O que amarga é também vasto, ou mágoa, qual desacordo. Nem seja sombra.
Reparei quando a voz debilitada do mesmo fulano suava por saudar outro
qualquer, quase que na mesma conjuntura:
- Senhor Vita, onde vai tanta alegria?
Assustei-me: há-de o tal Vita estar em minhas circunstâncias? O caminho
dele achega-se ao meu? Podemos padecer da mesma alegria como adeptos de um
mesmo clube ou é o povo que tem em alguns os mujimbos e a ironia… Os rumores
chateiam-me.
Levanto os olhos e vejo um senhor de cinzento; um cinza menos vistoso do
que a qualidade do meu traje. O que acabou comigo é o caso de que o tipo trazia
inequivocamente a minha gravata, o brilho amarelo da minha forquilha,
assustei-me de novo. Quase o vi sorrindo com os meus olhos, digo que o que
achei nos seus olhos é a minha boca sorrindo ainda à brisa, digo, ele estava
coberto de toda minha alegria.
Respondia então ao fulano:
- Vou para o cemitério; vou a um funeral – disse numa resposta folgada.
Achei difícil qualquer homem que seja, ir a um funeral com uma gravata
amarela. Penso que cada cor serve a um determinado lugar ou destinação. Não
gosto, por exemplo, ver o presidente empossar ministros com um fato preto; as
grandes catedrais podem fascinar com paredes brancas; a cor do uniforme da
polícia nacional é um claro exemplo de como se pode estar bem com a cor.
- Quem é aquela pessoa? – perguntei logo que o homem cinzento se foi com
a sombra, sem que fizesse caso de como estávamos parecidos naquela manhã.
Tinham-me respondido que era o senhor Vita mas isso já o sabia. E
respondiam-me mais:
- É o Vita Pemba.
Não me ocorreu antes que Ruth tivesse aquele homem. Com ela me afeiçoei
e sonhei sem que algo me dissesse mais sobre suas intimidades. É lógico, nossas
relações limitavam-se à palavras sonhadas, por vezes pedaços de sonhos ou
sorrisos partilhados. De modo nenhum imaginei que Ruth Pemba fosse casada.
Senti-me contrariado sem direito ao ciúme.
Tenho um argumento de vítima, pois que naquela partilha de sonhos
ultrajados agora, ela detivera a cor e a beleza da minha gravata. Preparou o
marido para ir a um funeral com a cor mais intensa entre as cores que escolhi
para colorir-me. Senti-me invadido na minha utopia.
Fui argumentar com ela e, afinal, ela só falava coisas minúsculas, com
aquelas palavrinhas repetidas nos nossos sonhos ou, quando muito, alongava
sonhos repetidos. Sempre fora assim, desde que me vira chocado com a sua
kimbundaria; e desde aquele sonho abrasador que no começo nós sonhamos em noite
escura. Um minuto só mais e lá estava ela a me encher com a malícia do sorriso.
Deixei de lhe cumprimentar; e de lhe perguntar os sonhos de quê. Por
desilusão ou por ciúme, talvez pelas duas mágoas ou por simples ira, impus um
castigo: parei de lhe sonhar e ela não se via mais na minha memória, nem se
encontrava nas minhas noites. É muito simples: eu não tinha mais sonhos.
Para mim as coisas tomaram o rumo da gravidade. Não menos para Ruth que
passou quase a distanciar-se dos vivos
para limitar-se à penumbra do seu quarto no nono andar do edifício cinco.
Tentava apagar os dias lastimando o facto de não poder avistar-se comigo no
limbo das noitadas. Para ela os meus sonhos tinham acontecido tarde demais, ao
ponto de só agora ter vivido o paraíso onírico.
- Olha lá! É uma instância que acontece apenas na infância, porra! –
exclamei porque estou bastante admirado pelo facto de só agora ela surreambular
em canteiros da infância.
Nessa época não podia imaginar que a sua alegria passasse assim tanto
por mim. Nunca fui inspiração para ninguém! Muito depois vim a saber que por
esses meses que se seguiram ao meu distanciamento, Ruth dormia tentando avistar
o meu sonho mas apenas avistava minhas lucubrações. Algum tempo depois saía
delirando pelas ruas de muitos meses, ou seja, eram tantas ruas e ruelas do
passado numa obnubilação de muitos nervos, como quando alguém desmaia na
insónia. Ouviram-na ainda contar que toda sua vida fora um mistério. Segundo
ela, passam dezoito anos que não sonha com coisa nenhuma e isso piora a matéria
de tal mistério. Não entendi nada mas ela tinha confusamente dito isso, como eu
saberia mais tarde.
Foi um “Deus que nos acuda” com muita gente a tentar remediar o caso
receitando ervas, orações e comprimidos mas resistia a qualquer mutação da sua
vida nova. Mentira, nunca foram anos mas sim meses, ela precisaria ter mais do
que os seus vinte e quatro anos para ficar apenas com a memória daqueles
sonhos, segundo a experiência da idade. Pelo que sei, transformar meses em anos
é uma faculdade dos delírios e só dos delírios. Por isso fui, e até por dever,
procurá-la.
Encontrei-a assim na Avenida Lisboa, ali na berma do Bairro Prenda, onde
acontecia uma revolução em
pleno Outubro, com gente aos bandos atirando, com revoltas e
explosões que a acordaram no meio de outro delírio entre a sonolência e a
vigília. Não foi nada de grave. A turbulência é apenas a forma de determinadas
paixões que caracterizaram lutas armadas.
Subtil, conduzi-a à casa do Vita onde deveria estar sempre. O Vita é um
tipo fixe. Recebeu-me bem este senhor que nem sequer descobriu alguma vez que
em tempos eu sonhava com Ruth. Desconhecia por completo que a cor da gravata
que usava para ir aos funerais foi uma escolha rigorosa de um dos meus sonhos
que Ruth interceptara.
Ainda que o Vita soubesse de toda aquela partilha, abunda a meu favor o
facto de que nunca me aproximei de Ruth mais do que o necessário – pouco ou
nada conversamos, em hipótese nenhuma de haver contacto íntimo.
Demonstrou o Vita ser muito acolhedor, seriamente afável. Conversámos
enquanto lhe fui notando o sotaque dos Congos. Pode ser um congolês ou um
regressado da diáspora marcado pelo francês e pelo lingala.
- Ela estar sonhar cuesas de não prestar; eu lhi ouvir só no sonho dela;
cuesa de maluca, ahan; pessoa quando sonha tem que ficar calada, ahan; lhi veja
ainda como estar hoji, pai… Eu ir embora na Uígi. Eu lhi deixa aqui mesmo no
casa dela.
Está bem, pronto, esta forma de ser é que não presta. Admito que é
fraqueza deixar alguém que enlouquece, ma Vita não o fez por falta de
acolhimento espiritual. Desconfiava simplesmente de alguma traição que, repito,
não se dera em pleno.
Abandonada pelo marido, fui visitá-la uma semana depois. Alguma coisa se
passou nesse dia quando decidida ergueu-se e sem pestanejar sentenciou: “vou
sonhar comigo mesmo”.
Achei-a formidável e imprevisível, com uma lição para amar. Nunca vi
ninguém frenar no meio da deliração, reeducar-se e sabiamente corrigir alguns
defeitos, de modo tão inesquecível.
Praticamente Ruth saía do estado confusional para ir à guerra. Diante do
espelho temperava a cara: pintava os lábios, dizimava as sobrancelhas, pintava
os olhos, empoeirava-se… Se não fosse Outubro eu acharia ali mesmo o carnaval
ou quase.
Saiu a brilhar como uma índia com pinturas de guerra; saiu para acabar
com a minha vida de sonhos, indo para qualquer lugar e quem por pouco não
enloqueceu fui eu. Era já dada como morta em poucos anos que se interpuseram
dali ao momento que a avistei casualmente, numa terça-feira de verdadeiro
carnaval, passados quatro obnubilados anos. A esse tempo ela chamou “os anos do
chão” e sabia eu porquê.
Era a vez que passava no desfile o União Kiela, achei-a no meio das
peixeiras do município do Sambizanga que constituíam o essencial do grupo. São
as mesmas, em regra, que vendem o pregão do peixe no mercado de São Paulo. Ruth
estava uma cantiga com um floreado sobre o fundo claro da saia e um blusão
vermelho cheio de pequenos argumentos que de longe eu via cintilar como
peixinhos de prata. Estava linda e distinta no meio das peixeiras movendo o
semba do Kiela.
Concluí, de certa maneira, antes que a desejasse um dia em casamento,
que a vida vale menos sem sonhar. E foi o único modo de rogar-lhe que sonhasse
comigo de novo. Na sua resposta foi pragmática e disse: sim, aceito casar
contigo.
Na verdade eu não a tinha ainda pedido em casamento mas sei agora que
havemos de sonhar infinitivamente juntos. Deslumbrante.