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Sunday, January 13, 2008

O Momento Da Criação Poética
(alguns achados)

Certa vez, no espaço de entrevistas "Leituras" da Televisão Pública de Angola (TPA), então apresentado pelo escritor e crítico literário Luís Kandjimbo, respondi a uma pergunta sobre a (ir)racionalidade da poesia, mais ou menos (cito de memória) assim: no momento que se redige ela discorre de modo irracional...
Hoje mantenho a mesma opinião mas é necessário esclarecer sobre distintas circunstâncias, modos, acessibilidade psicoemocional etc.. Cada poema nasce num momento que lhe é específico. Alguns de meus poemas surgiram irrompendo de súbito as brumas do inconsciente de um modo que se pode chamar inspiração. Porém, muitos são os poemas que por falta dessa inspiração começaram a ser escritos de modo cerebral/racional, revisitados e corrigidos até propiciarem o fantástico momento interior, irracional e impulsivo, que instintivamente incorpora palavras e figuras antes redesenhadas, e que enquadra na forma que descai enfática e inspirada, da própria mente.
O poema intitulado "Colheitas Uterinas", da minha primeira obra literária "A Forma dos Desejos", é um exemplo de poema que demorou a constituir-se. Estava eu na Lunda-Norte quando visitei por duas ou três vezes o Museu do Dundo. Uma estrutura artesanal moldada de barro e argila apresentava forma humana com contornos de mulher, em cujo ventre (útero) se abria um forno. Esse forno fora em épocas passadas o apanágio dos ferreiros lundas. Importa é dizer que "Colheitas Uterinas" nasce com a simbologia da mulher e do fogo. Os primeiros versos, persistentemente abortavam o poema. Obviamente racional, a intenção fracassava; cansei-me de riscar, emendar e reescrever. Alguns anos depois, estando já a residir em Luanda, todos esses elementos e aqueles amontoados de palavras fluiram, encaixaram-se, inspiravam-me... O poema resultou.
*********
Colheitas Uterinas
Da paisagem testemunhei a prova de fogo
o silêncio material e a riqueza metafísica.
Na tua lavra, irmã, há colheitas uterinas:
uma nova viagem para que nos regressemos
nós mesmos na indiferença.
Liberdade sem medo, conta os dedos da
tua mão procriada conta p'ra nação:
nosso machado secreto canta pela raiz
- Tens essa noção de fogo em tua tabuada?
Fonema d'orvalhos
Dou aos meus versos a sonolência dos teus gemidos
porque não encontrei outra mulher que me aguardasse
com o pote d'orvalhos viçosos:
manhãs de água se levantam no ímpeto
nutres as peles de meus tambores na humidade
para não mais esquecer as vogais despertas da erosão
desde o primeiro calvário ao hímen nucleado
que estendias nos meus braços de fome.
Dou à Escrita Meus Tormentos
Com medo dou à escrita o que pertence
às vitórias;
narro a fadiga o funeral da
abundância;
arrastei corpos iletrados e maravilhas
dos palácios e mesquitas;
disseram-me que calasse atentavam
contra as palavras;
feriram o pensamento;
as palavras vieram juntar-se a
tudo quanto não vi.
nunca mais verei nada!,
apenas o que disse das
palavras impacientes nas minhas retinas
desmistificadas.
e deram-me um tiro na retina.

3 comments:

Anonymous said...

Gostei muito. Para quando novas publicações?
Abraço.

A SEIVA

Érica Antunes said...

Prezado João Tala,

Sou doutoranda do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo - USP), e me interesso sobretudo pela poesia africana de língua portuguesa.

Tive contato com a sua obra por indicação da Profa. Dra. Laura Padilha. No entanto, só encontrei um livro seu, "A forma dos desejos II", durante o III Encontro de Professores de Literaturas Africanas, realizado em novembro do ano passado, no Rio de Janeiro.

Gostaria muito de ler outras obras suas: como posso consegui-las?

Um abraço!

Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

NAMIBIANO FERREIRA said...

Caro Poeta,
Este seu texto até arrepia... eu humilde poeta revejo muitas das situacoes com que me deparo desde que escrevo poesia...
Lindo!!!