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Wednesday, June 13, 2012


A QUESTÃO DOS INCÊNDIOS


         Eu e a Lucrécia estávamos apreciando os fogos – que depois julgamos ser o fogo da Despertação. Lúcidos, muito estriados de barras, alguns com contornos azul e laranja. Os fogos faziam barulho bum... bum bum... Eu estava a esfregar ainda os olhos dormentes porque despertava de um sonho estúpido em que ladrava com os cães. Mas aquilo é quê? – foi a primeira pergunta que fiz quando os rumores de fogo me bateram os tímpanos, mas Luci já cá fora cantava num mundo de novo iluminado.
          O mundo está a nascer de novo! – ludibriava-me o próprio pensamento quando vi a lua, farta e colossal sempre espumando no alto. Os fogos voavam, alindavam o tempo. Não é o mundo a nascer de novo, meu querido; são anjos, anjos de fogo. Alguns têm asas enormes, vê-los!
         Anjos de fogo?! Mas quem é a Luci para alimentar o que não está na bíblia? Mentalmente eu desapontava a crença que a Lucrécia tinha bem entranhada na leveza da sua alma. Aquela luminosidade não é fogo. É parente do fogo – disse-lhe.
         O vizinho Pedro – a quem Luci chamará sempre a alma do diabo para o resto da vida – entrou aos tropeços e encaminhou-se até ao fundo do nosso quintal onde eu e ela misturávamos os cânticos. “Incendiaram o paiol vamos fugir...”. Luci não o escutava. Luci ressalvava os cânticos.
         Passadas duas horas, Luci não conseguia dormir. Dizia e repetia, sentia o corpo ardente, para voltar a dizer que o que sentia não era fogo na carne mas sim um espírito quente. Mal recomecei a dormir senti o ladrar dos tormentos. Dessa vez eu não ladrava com eles. Eles é que ladravam dentro do meu corpo. Tremia e transudava ao ritmo dos cães. O sonho foi aumentando de enredo. A certa altura, a gritaria da matilha pouco faltou que me levasse à explosão. Ainda a sonhar comecei a expulsar de mim os kalundus e os caninos. Xinguilava. O lençol ficou encharcado de suor.
         Lucrécia voltara ao pátio. Contei-lhe que havia cães povoando meus sonhos. Ela aconselhou-me a aquecer o corpo bebendo chá quente, pois ela estava a sorver chá de caxinde, com maturidade, com elegância, como exige a bebida. Tomei-lhe a caneca do mesmo jeito suburbano.
          No entanto, a lua continuava a espumar. Mais fresca saltava a madrugada e Luci continuava a sentir-se aquecida na alma. Tu estás louca Luci; não é o espírito quente, estás com febre! Ela não dormiu. Nunca mais voltaria a dormir. Às noites fazia uma fogueira e achegava-se muito perto dela; no quarto de dormir espalhava castiçais, velas vermelhas, amarelas, azuis, verdes, e rezava para que as noites continuassem quentes e húmidas.
         Um dia desses fiquei muito assustado porque Lucrécia estava a tremer de febre interna, e resolvi procurar um médico. De volta, estava ela já em coma. Os olhos dela continuavam abertos, vivos; o corpo estava ainda muito quente; a respiração aprisionada mas o coração via-se ainda a saltitar no peito.
         - Febre tifóide – disse o doutor. – É por causa da água.
         - Não posso entender, senhor doutor. A nossa água é bem fresquinha, da geleira; mesmo whisky o sorvemos com gelo. Esta febre é do fogo. Ultimamente ela própria se junta ao fogo. E conta p’ras visitas que os anjos são de fogo. Não será uma loucura qualquer?
         - A nossa água não é tratada, rapaz. Mata mais de cem por ano, só na capital.
         Só me restava esta! A água de beber também mata. Tenho de ferver e decantar a água como se estivesse a preparar uma ementa.
         - Senhor doutor não é melhor pôr antibiótico directamente na água? Carvão está muito caro nas praças.
         Luci sucumbia. Vi com meus próprios olhos, estes olhos que a terra há-de comer, que expelia pela boca, línguas de fogo. Luci sempre foi uma mulher muito quente, mas não podia eu acreditar que o seu corpo produzisse labaredas. Mas vejamos: se na verdade a pureza dos anjos é quente – pois ela falava de anjos de fogo –, então ela própria era, inadvertidadmente, um anjo na terra.
         Depois (então) começo o verdadeiro conto. Desses que eu respiro dos anos acontecidos n’Àfrica exótica, tropicalíssima. Nunca que eu senti uma paz com a cor do anjo. Nunca. Foi só quando recomeçou o tiroteio. Na altura falava-se já do sangue quente: nós com o sangue aquecido? O cheiro da pólvora é um doce querer no corpo interior? Ah, não. Nas mochilas enchemos granadas. Os reclames e os panfletos estavam bem prontos de nos educar: “vamos lá fazer a guerra para acabar com a guerra.”
         Aié! Guerra pela paz?! Na óptica de Luci a paz é quente e os anjos são de fogo. Logo, a paz é isso: nasce dos incêndios. Estou finalmente a perceber... a questão dos incêndios!

in os dias e os tumultos

        






3 comments:

Luiz Filho de Oliveira said...

João, meus cumprimentos pelo blog interessante e crítico. Gostei bastante de sua poesia. A partir de agora estou seguindo-o, meu irmão de idioma. Até mais páginas.

Fred Caju said...

Massa teu espaço, camarada!

blogtalas said...

Obrigado amigo. Maravilhei-me igualmente com Deleitura. Vou seguir