A QUESTÃO DOS INCÊNDIOS
Eu e a
Lucrécia estávamos apreciando os fogos – que depois julgamos ser o fogo da Despertação. Lúcidos, muito estriados de
barras, alguns com contornos azul e laranja. Os fogos faziam barulho bum... bum bum... Eu estava a esfregar
ainda os olhos dormentes porque despertava de um sonho estúpido em que ladrava
com os cães. Mas aquilo é quê? – foi a primeira pergunta que fiz quando os
rumores de fogo me bateram os tímpanos, mas Luci já cá fora cantava num mundo
de novo iluminado.
O mundo
está a nascer de novo! – ludibriava-me o próprio pensamento quando vi a lua,
farta e colossal sempre espumando no alto. Os fogos voavam, alindavam o tempo.
Não é o mundo a nascer de novo, meu querido; são anjos, anjos de fogo. Alguns
têm asas enormes, vê-los!
Anjos de
fogo?! Mas quem é a Luci para alimentar o que não está na bíblia? Mentalmente
eu desapontava a crença que a Lucrécia tinha bem entranhada na leveza da sua
alma. Aquela luminosidade não é fogo. É parente do fogo – disse-lhe.
O vizinho
Pedro – a quem Luci chamará sempre a alma
do diabo para o resto da vida – entrou aos tropeços e encaminhou-se até ao
fundo do nosso quintal onde eu e ela misturávamos os cânticos. “Incendiaram o
paiol vamos fugir...”. Luci não o escutava. Luci ressalvava os cânticos.
Passadas
duas horas, Luci não conseguia dormir. Dizia e repetia, sentia o corpo ardente,
para voltar a dizer que o que sentia não era fogo na carne mas sim um espírito
quente. Mal recomecei a dormir senti o ladrar dos tormentos. Dessa vez eu não
ladrava com eles. Eles é que ladravam dentro do meu corpo. Tremia e transudava
ao ritmo dos cães. O sonho foi aumentando de enredo. A certa altura, a gritaria
da matilha pouco faltou que me levasse à explosão. Ainda a sonhar comecei a
expulsar de mim os kalundus e os
caninos. Xinguilava. O lençol ficou encharcado de suor.
Lucrécia
voltara ao pátio. Contei-lhe que havia cães povoando meus sonhos. Ela
aconselhou-me a aquecer o corpo bebendo chá quente, pois ela estava a sorver
chá de caxinde, com maturidade, com elegância, como exige a bebida. Tomei-lhe a
caneca do mesmo jeito suburbano.
No entanto,
a lua continuava a espumar. Mais fresca saltava a madrugada e Luci continuava a
sentir-se aquecida na alma. Tu estás louca Luci; não é o espírito quente, estás
com febre! Ela não dormiu. Nunca mais voltaria a dormir. Às noites fazia uma
fogueira e achegava-se muito perto dela; no quarto de dormir espalhava
castiçais, velas vermelhas, amarelas, azuis, verdes, e rezava para que as
noites continuassem quentes e húmidas.
Um dia
desses fiquei muito assustado porque Lucrécia estava a tremer de febre interna,
e resolvi procurar um médico. De volta, estava ela já em coma. Os olhos dela
continuavam abertos, vivos; o corpo estava ainda muito quente; a respiração
aprisionada mas o coração via-se ainda a saltitar no peito.
- Febre
tifóide – disse o doutor. – É por causa da água.
- Não posso
entender, senhor doutor. A nossa água é bem fresquinha, da geleira; mesmo
whisky o sorvemos com gelo. Esta febre é do fogo. Ultimamente ela própria se
junta ao fogo. E conta p’ras visitas que os anjos são de fogo. Não será uma
loucura qualquer?
- A nossa
água não é tratada, rapaz. Mata mais de cem por ano, só na capital.
Só me
restava esta! A água de beber também mata. Tenho de ferver e decantar a água
como se estivesse a preparar uma ementa.
- Senhor
doutor não é melhor pôr antibiótico directamente na água? Carvão está muito
caro nas praças.
Luci
sucumbia. Vi com meus próprios olhos, estes olhos que a terra há-de comer, que
expelia pela boca, línguas de fogo. Luci sempre foi uma mulher muito quente,
mas não podia eu acreditar que o seu corpo produzisse labaredas. Mas vejamos:
se na verdade a pureza dos anjos é quente – pois ela falava de anjos de fogo –,
então ela própria era, inadvertidadmente, um anjo na terra.
Depois
(então) começo o verdadeiro conto. Desses que eu respiro dos anos acontecidos
n’Àfrica exótica, tropicalíssima. Nunca que eu senti uma paz com a cor do anjo.
Nunca. Foi só quando recomeçou o tiroteio. Na altura falava-se já do sangue
quente: nós com o sangue aquecido? O cheiro da pólvora é um doce querer no
corpo interior? Ah, não. Nas mochilas enchemos granadas. Os reclames e os
panfletos estavam bem prontos de nos educar: “vamos lá fazer a guerra para
acabar com a guerra.”
Aié! Guerra
pela paz?! Na óptica de Luci a paz é quente e os anjos são de fogo. Logo, a paz
é isso: nasce dos incêndios. Estou finalmente a perceber... a questão dos incêndios!
in os dias e os tumultos
3 comments:
João, meus cumprimentos pelo blog interessante e crítico. Gostei bastante de sua poesia. A partir de agora estou seguindo-o, meu irmão de idioma. Até mais páginas.
Massa teu espaço, camarada!
Obrigado amigo. Maravilhei-me igualmente com Deleitura. Vou seguir
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