PROCURANDO VITÓRIA DYA NHANGA NO
POENTE
No bar do Manecas costumava
repassar as horas. Às vezes, o vilão dono do bar, o tal do Manecas que gostava
de fazer braço de ferro comigo, mandava-me ocluir os olhos sonolentos, lá longe
da sua herdade. Ontem foi mais um desses dias, podre de vinho. A minha bolhosa
respiração, de completa embriaguez, precipitara a irritação do magnata.
Gesticulei um soberbo manguito e... asei.
A EDEL não tinha reposto a
corrente eléctrica, por isso, furei pela noite; às apalapadelas apeava-me no
meu bulício; vinha do vinho carregado de mazelas, para o meu recanto. Mas...
Ai a minha vida! Vitória dya Nhanga, com quem assentava o
pensamento, os anos necessitados e o lar, não estava em casa com o habitual
fogo da sua conversa: “estás nem podre; tresandas alambique, blá blá blá”.
Aonde foi, também não sei.
Tropeço em procuras: “ó senhor,
viu uma mulher comprida, cara oval, longas jubas, bonita assim, assim?”
- Espera ali – ordenou, fingindo
que pensava –, mas é b’leza demais pra mulhê cá das nossas. Na ilha tem algumas
coisas assim, vá até lá.
Eis uma sugestão na hora certa.
Vitória noutros passados fugira da nossa solidão para refrescar uma memória tão
somente de ausências. Se lembro Vitória dya Nhanga, sete anos sete ausências.
Depois do casamento iniciei a frequentar o Maneca’s Bar. Não para azedar-me,
não. Por outros motivos, o ambiente por exemplo. Ouvia os meus compadres: “bebo
para esquecer a guerra”. Eu não tinha guerras. E a guerra deles, das mais das
vezes, não passava de puros atritos conjugais.
Dilaji autêntico ngadiama dos
diabos, o vinho começou a ser maior do que eu. Ausentava-me da estrutura
familiar; dinamitava os direitos dela lá em casa; tornava nossas vidas mais
sentenciosas.
Peguei-me, rumo à Ilha do Cabo,
rumo ao pequeno poema que Nzambi pôs no mundo. A Ilha é o desejo do Criador.
Fica mesmo ali, no Pôr do Sol. E eu numa hora igual, procuro uma mulher,
emocional e lírico.
Com licença – pedi na primeira
casa que abordei. Enquanto aguardava certifiquei-me do reclame “CASA DA INFÂMIA
2000”. (“Bem – pensei –, ainda só estamos em 1988; estão adiantados logo dois
anos”).
“Aqui, pouco adianta pedir
licença” – atirou-me uma voz lá de dentro. Contudo, entrei.
- Por favor, senhor, aqui não
está Vitória?
- Qual Vitória?
- Vitória dya Nhanga, senhor.
- Espera aqui – disse um pouco
atrapalhado – vou perguntar na minha mulher. Esposina, conhece Vitória?
A senhora veio mais p’ra cá. Uma
trouxa com uma oração estridente, mas um sorriso perturbador. Conhece não só
uma Vitória mas trinta ou quarenta delas. Ela e o bandido tratam de nomes
femininos com profissionalismo. Agradeci o excesso mas não pude deixar de
convocar do fundo da minha alma, um palavrão e... asei.
Casas que fazem negócios? Não
entendo. São manjedouras?! Não vou mais em nenhum desses sítios que poluem a
vida turística.
Seguidamente então que me aparece
a sorte: o mano Tamba Quibebe!
O mano Tamba é um género do mar.
É uma das pessoas com o risco de vida no mar; na terra só hora de ancorar,
trazer seus peixes p’ro povo, reagrupar redes, anzóis, mantimentos. Do mar ele
conhece até a voz. Essa água grande, imensa, que nós vemos todos os dias azul e
inanimada também tem uma voz. Com minha
sinceridade falava “tu, mano Tamba, és um peixe/humano”. Pelo que respondeu:
“não faz mal, irmão; peixe é vida”. Ele só falava essas pequenas palavras.
A conversa ficou desanimada
quando lhe falei dessa maka com a esposa. Depois apareceu um velho seu amigo,
dado às danças. Ele marchava em passo de dança. É do “Mundo da Ilha – um grupo
de carnaval – vai um toque na areia, ualá-láá.
Na Ilha o carnaval é doença (a
conclusão é minha).
O mano Tamba contou no amigo a
maka que tenho no dia a dia com Vitória. Este encheu um discurso: “ Luanda
começou a escurecer; mudavam-se os nomes, alguns dos quais tinham sido os mais
certos. Com novas roupagens deram um nome ao carnaval: Carnaval da Vitória.
Hoje não sabemos que nome virá depois. Estou velho para tantas mudanças...” – o
velho interrompeu-se: “porque procura Vitória, é esposa do mano? Então procura,
eu não lhe vi. Quem procura acha”. Obrigado pela grande ajuda, amigo.
- Como é que essa moça é? –
perguntava de novo o velho, agora pela sétima vez.
Mano Tamba e o velho ajudavam na
busca. Levávamos longe a nossa procura. Em certo lugar avistamos um recinto
coberto com folhas e ramos de coqueiros, em cujo átrio, onde os protestantes
costumavam entoar hinos de louvor, uma multidão aclamava, agradecendo a Deus
pelo último milagre.
Qual milagre? O amigo do mano
Tamba sugeria que investigássemos o local porque, segundo ele, esse constituia
o mais espectacular de todos os caminhos.
O dono do local estranhou-nos.
Levantou-se e sacudiu no velho com fortes abanões: “que abuso é este, ein?
Anda, fala”.
- Aqui há Vitória? – disparou
incisivamente o velho.
- Não, só peixe – respondeu o
proprietário apontando para o centro do cenário sufocado de outras gentes
(turista?) onde uma mulher jazia húmida sobre o manso tapete de areia.
- Aquilo é um peixe? – indaguei
perplexo, já cá comigo desconfiando de bruxaria, dessas que metem uanga e
calemas.
- Peixe, não. Só o rabo –
responderam os loucos pelo espectáculo. Feirantes, turistas, pescadores, homens
do mar e da terra, gritavam emocionados. Haviam e tudo baptizados o espécime
com nomes que a nomenclatura marinha não prediz “Mulher-Peixe”, onde já se
ouviu? “Maria-Macoa” o quê?, não é nome nem de gente nem de peixe;
Joana-Corvina”? Pior.
À boca do mistério exclamei: “oh!
São os mesmos olhos e os mesmos lábios; os mesmos peitos. Os mesmos encantos
que me fizeram seu homem”. O meu espanto desembocava num espasmo verbal.
Ouviram-me homens do mar, longe da terra. Não era uma loucura. Eu sonhava (“era
quase o perfil de Vitória”).
Os meus olhos encontraram os dela
no fim da tarde. É a hora do mundo quando os pintores retratam um mar sob o
poente. Sonhar assim não faz mal.
Mano Tamba me aconselhava: “vai
p’ra casa irmão, acaba de sonhar lá. A Ilha é boa, tem belas coisas mas não
estás habituado a ela”.
- Está bem, mano Tamba; ELA
voltará. Convence-a a voltar.
- Espera aí. Por que tratas por
“ela” com letras grandes?
- Porque ela merece – respondi.
Mano Tamba primeiro pôs-se a
rir com aquele riso abocanhado,
vagaroso, cheio de kitaba dentífrica, para depois contrariar: “não há mulher,
por mais puta que seja, que mereça o pronome em letras gordas”.
- !!! – estupidifiquei-me.
A última parte do mano Tamba
Quibebe ferira-me profundamente que tive de contar ao Manecas. Enquanto contava
suscitava curiosos. Voltava a contar. Outros mais chegavam, pediam que a
recontasse. Inexplicavelmente havia mais palavras dentro do conto – uma, duas,
três... vinte vezes – quando a boca se cansou de contar e o conto cansou a noite;
a noite fez o vinho e cansou a mente. Finalmente Manecas resumiu: “também não
conheço tipa alguma que mereça o p.p. em letras enormes. Esse tal do mano Tamba
deve ser um gajo muito esperto”.
Recolhi-me a pensar meus
episódios. Sorvia uma quente ilusão na despreocupação do «scotch». Sei dos
balbucios, dos olhos que me tomam a direcção. Falam, agradeço. Agradeço ainda
ao ridículo que escutam da minha situação. Não sei mais onde tive de sonhar
estórias para as reeditar na mesa de bar.
Fim, THE END – comos filmes –
c’est fini, diabos!
in Os Dias e os tumultos - contos