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Friday, January 28, 2011

PODE SER. PODE SER


pode ser a morte ou o parto
deixar-me um riso ou um sonho
longas esfregas da água
ou a seca do hino

nas longas formas das mãos
diante da minha boca como
um peixe liso

exacerbar o canto
de uma ave intacta

esse hino que afinal é a morte
perde-se entre velhas memórias
que disse a parteira da morte:

as mãos aguardam o oceano!

in As formas do Desejo II

Saturday, January 22, 2011

REBECA NZOJI

(do livro rosas & munhungo, aguardando lançamento)

**************

Rebeca Nzoji[1] tinha uma estranha mania de ficar desarrumando noites, pulando de sonho em sonho como uma sonâmbula. Irrequieta mas nada grave, não fosse o mau hábito que tinha de buscar água de noite, no pequeno rio que, como ela própria dizia, corria entre nós dois. Isto quer dizer que os seus sonhos eram de mentira ou, pelo menos, não tinham a consistência dos de uma mulher que dorme porque entre nós pouco mais ou menos havia do que laços difíceis.

- Ontem vi um sonho, José, todo sem importância, uma gente afugentada, uma gente atrapalhada e desorientada...

Ela me dizia coisas assim tão paradas e sem sentido, que eu sempre duvido sejam sonhos realizados.

- Rebeca, sonho não se vê. Você dorme e pronto, acontece sonhar. Sonho se vive.

Outra coisa que eu mesmo desconfio é que anda planeando os sonhos, pondo conteúdos novos na sua cabeça, depois vai com eles sonambular na mentira de qualquer noite.

De dia dorme completamente, é dizer os olhos estão mesmo apagados, o silêncio é próprio de qualquer descanso, enquanto a tarde arde cá fora.

Lhe aviso os perigos que tem mexer na noite, ela não me ouve. Sabe Deus quanto me custou aguentar meus receios, até há pouco tempo quando o mundo era uma guerrilha.

- Um dia te encontram os guerrilheiros e raptam-te, mulher. Aliás, perdida como andas na escuridão, é muito fácil te acharem as balas e eu não sei o que faço desta vida sem você ó Nzoji. – Dizia-lhe, nada com tudo isso, ela não me aturava.

Finalmente firmava-se definitivamente a paz e nada aconteceu de imediato com os desequilíbrios da Rebeca Nzoji até que dessa vez saiu azarenta – são já sete dias perdidos – ela sumiu.

Com três dias, fui à polícia. O chefe fazia-me algumas perguntas inesperadas e anotava as respostas numa caderneta. Perguntava o que não tinha direito, coisas desconformes como esta: “porque não arranjou um guarda-costas pra sua mulher se sabe ela se aventurava na noite?”

- Meu chefe, somos um país de muito poucos. Guarda-costas é gente inútil. É uma pessoa a mais para atrapalhar.

- Agora começa a falar política. Olhem pro gajo...

Não é política, me desculpei, mas como é que ia pagar um tipo que tratasse de salvar primeiro o pêlo quando a bandidagem começasse em balázios? Alguns apenas engrossavam o tiroteio, mandando balas perdidas para todos os cantos, matando mais gente. A culpa ia ser minha se alguém se ferisse, já que tenho uma maluca em casa que fura pelas trevas.

Por culpa alheia passei a ser o primeiro suspeito na base desse desaparecimento, por mais incrível que seja. Ordinário – pensei – eu ia desaparecer minha esposa pelas funduras duma noite, num simples capricho? Que desumanidade!

- Quantas mulheres você tem? – perguntou o chefe, interrogatório que chateia.

Felizmente, eu só tenho a Nzoji. O chefe continua a pensar que dei sumiço em Rebeca para ficar com a(s) outra(s). Não tem cabimento.

A investigação começou a martirizar-me. Foram à minha casa procurar elementos, vestígios de crime, papeis que condenam, diário de morta, odores e outras coisas. Desarrumaram tudo... tudo. Um pente fino em minha triste vida. Agradeço que não voltem sem notícias de Rebeca.

O jornal da minha cidade relatava uma notícia desconfirmada: Rebeca Nzoji perdeu suas noites. Ela pode estar viva em qualquer dia. Segundo a polícia, configura-se um rapto e tem já um suspeito – o próprio marido.

Primeiro de tudo, rapto foi sempre uma invenção da guerrilha como forma de angariar as bases. Não estou em guerra com ninguém. Falam e escrevem à toa, isso me aborrece.

O meu bairro se atormentou no tema da cidade. O culpado em todas as hipóteses era eu. Muito mais chatice quando a Organização da mulher entrou no assunto: entrevistas na televisão e um debate que chamaram “Desaparecimento Feminino”. Falaram que Rebeca Nzoji desapareceu de maus tratos; e que seria eu quem a mandava buscar água na tromba do breu. Chatice maiúscula, delatar sem provas.

Ficaram piores quando uma das comadres ligou o sumiço ao oito de março – a data inesperada da noite que Rebeca levou consigo, partindo da minha (in)tranquilidade. – Me apontavam como um discordante do feriado da mulher. No meu bairro haviam de me perguntar incrédulos.

- Como é também você, no dia das mulheres manda a sua lá pro fim da noite buscar água? Você não sabe que nesse dia elas é que mandam? Na vez de flores oferece um ramo de castigos? – esse são os homens, mal influenciados pelo chefe da polícia do bairro.

(“Como é que eu explico, Nzoji, que tu és teimosa que nem casmurra? Respeitar tua liberdade passa pelo direito da tua casmurrice. Em casa, nós dois temos no direito de ser como somos, o dever de cada um. Tu passas por cada noite obcecada como um operário que acaba no seu dia, é uma liberdade tua que ninguém tem o direito de manchar nas antenas das notícias onde se espalham tantas inconsequências ou na esquadra policial. Se estás me ouvir, Rebeca, venha e me acuda desse mujimbo[2], ainda sou inocente.”) – esta minha oração eu só a murmurei. Entendo que ela pode escutar esta voz sofrida, do que gritando que nem raiva. É de meu avô que tinha todo o conhecimento, o aprendizado, dizia-me ele “meu neto, com os mortos a gente fala mudo; com o ausente a gente sussurra; uma voz baixinha vai mais longe do que a raiva”.

Com razão, meu avô, com razão. Rebeca reapareceu no sonho. Eu sonhava o que ela explicava: aconteceu de repentemente traída pelo sono. Enquanto lutava para se manter na vigília, algo desigual lhe surpreende entre sombras da vigília e do adormecimento. Esse desigual, algo que atingia o sono de uma pessoa que se quis parada na sua insónia, era um troço de gente. Seguira uma coluna de homens, crianças e mulheres, ensonados e sonhadores que diziam seguir o caminho das diferenças, um atalho que despertava na felicidade.

Haverá atalho nenhum que nos chega longe? Um caminho pequeno que desperta na alegria? É uma loucura, mais uma das poucas que Rebeca Nzoji me deu. Que diabos é esse diálogo que Rebeca estabelece com a minha conversa! Os nossos antepassados procuravam a felicidade em direcção ao mar. Do interior iam caravanas para o litoral... estou pensando bem? É provável: aquela coluna de gente sonhada perseguia uma certeza à beira do rio, direcção à foz. Isto é, para o mar.

Comecei uma briga com o tempo em marcha, obtive o direito das ajudas amigáveis e, esporeando um cavalo, cheguei ao limite do sono, onde despertei Rebeca rumando para o kalunga[3].

- Ias com o rio desaguar no mar?

Estava confusa recuperando-se do estado em que ficara hipnotizada. Ela sonhara com gente que não acontecera. Qualquer caminho, afinal, nos pode levar aos tempos intermináveis.

Rebeca Nzoji reapareceu mesmo quando o debate do “Desaparecimento Feminino” estava no auge, muito acima de mim. Parou toda a conversa; e parou com a chacota policial; e mais com aqueles que acreditavam que matei uma mulher. Os jornais apenas escreveram que ela foi resgatada de um sonho acordado, parada na insónia. E que ela seguia à beira da loucura, na margem do Rio Infindo. É outra mentira, ela ia desaguar no oceano com o seu rio, já expliquei, porra!

Agora, para não ter que explicar no futuro uma data de coisas nos meus acontecimentos com Rebeca Nzoji, peço divórcio.



[1] Nzoji, quando não é substantivo próprio significa sonho

[2] rumores; boatos

[3] mar; oceano

Sunday, January 02, 2011

Escritos de 1986. In Genésis - edição única da BJL Alda Lara


NASCER DA CHUVA

O pão das nebulosas
no trovão
do canário do canto
da terra deslizante

Mas é então a terra que
escorre o machado à raiz

É manhã de sonhos no ontem
com água. Tão linda a flor
do milho ainda inexiste
no boato do canário.


MUSA-PALAVRA


Perguntas quem minha
musa é
Não vive ela os
nomes à guisa. Não são
os seios pudicos com leite em pomba

Não se esplana aos portos
sediços que desembarcam as ancas
nos olhos acoplados do vagabundo

E os lírios lhe secam a seiva
imprimida.

É a PALAVRA de púrpura
apenas colhida das vozes que oiço
porque a palavra é a lavra em que
me cresço firme.


OBS: são impressões do início da canção; escritos de fome... vestígios de um sonhador, lá vão cerca de 25 anos.